"O trabalho não pode ser uma lei sem que seja um direito" Victor Hugo
08
Abr 13
publicado por Joana Pinto Coelho, às 12:43link do post | comentar

Sumário:

I – Constitui justa causa de resolução do contrato, pelo trabalhador, a implementação de um sistema de videovigilância, por parte da R., sem observância de qualquer dos requisitos legais, nomeadamente, informação prévia dos trabalhadores, na forma legal e autorização da CNPD.

II – Apesar de as provas obtidas pelo sistema de videovigilância não poderem ser consideradas em sede disciplinar, por ilícitas, tal não impede que a trabalhadora invoque tal matéria se decidir resolver o contrato, com invocação de justa causa pois, em qualquer dos casos, estamos sempre perante o mesmo comportamento ilícito da R., não tendo a A. produzido qualquer prova.

III – A circunstância de os trabalhadores terem presenciado a instalação de um sistema de videovigilância nos escritórios da Ré não significa que esta tenha cumprido o dever de informação previsto pelo art. 20º nº 3 do CT/2009.

 

Texto integral:

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


B… deduziu em 2010-10-12 contra C…, Ld.ª a presente ação declarativa, emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, pedindo que se condene a R. a pagar à A. a quantia de € 48.426,44, sendo:

1) - € 26.644,55 de indemnização por antiguidade;

2) - € 1.081,90 a título de férias e subsídio de férias;

3) - € 699,99 de proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal;

4) - € 20.000,00 de indemnização por danos não patrimoniais,
sendo tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal.

Alegou a A. que em 1996-04-10 foi admitida ao serviço da R. para sob a sua autoridade, direção e fiscalização e mediante retribuição, desempenhar as funções correspondentes à categoria profissional de Escriturária Principal, o que aconteceu até 2010-08-03, data em que por carta registada com aviso de receção, a A. declarou à R. que resolvia o seu contrato de trabalho com justa causa, com fundamento nos factos que aí relatou. Alegou ainda a A. que tais factos lhe causaram danos não patrimoniais, que descreve.
Contestou a R., por impugnação, tendo alegado também que pagava os subsídios de férias e de Natal fracionadamente em cada um dos 12 meses do ano, concluindo pela improcedência da ação.

A A. apresentou articulado de resposta.

Procedeu-se a julgamento e pelo despacho de fls. 252 a 256 o Tribunal a quo assentou os factos considerados provados e não provados, com a explanação da respetiva fundamentação, sem reclamações conhecidas.

Proferida sentença, o Tribunal a quo decidiu condenar a R. a pagar à A.: [ipsis verbis]:

“- a quantia liquida de € 12.613,34 a título de indemnização pela resolução com justa causa e a quantia liquida de € 1.045,00 relativa a férias não gozadas, quantias estas acrescidas de juros de mora, à taxa de 4%;

- a quantia de € 2.800,00 a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial.

Inconformada com o assim decidido, veio a R. interpôr recurso de apelação pedindo a revogação da sentença, tendo formulado, a final, as seguintes conclusões:

1.ª.. Não podendo a recorrente servir-se da captação de imagens como meio de prova, esse impedimento vale também para a recorrida que, por isso, não pode fundamentar a justa causa de resolução do contrato nessas imagens – vd. Art.º 3.º-A do CPC.

2.ª.. É irrazoável e infundado que se conclua pela existência de justa causa para a resolução do contrato, quando na origem da mesma está um comportamento eticamente reprovável e ofensivo praticado pela recorrida no seu local de trabalho – vd. n.º 1 art.º 394.º a contrario do CT.

A A. contra-alegou, pedindo a final a confirmação da sentença.
A Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta, nesta Relação, emitiu douto parecer no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.

Recebido o recurso, elaborado o projeto de acórdão e entregues as respetivas cópias aos Exm.ºs Juízes Desembargadores Adjuntos[1], foram colhidos os vistos legais.


Cumpre decidir.

 

São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal a quo:


1 – Em 10/4/1996, a A. foi admitida ao serviço da R. para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, exercer as funções de escriturária principal.

2 – Auferia a retribuição base de € 660,00, acrescida de € 115,50 de subsídio de alimentação.
3 – A A. exercia as suas funções nos escritórios sede da R.

4 – A R. procedeu à instalação nesses escritórios de um sistema de vídeo-vigilância.

5 – A A. e os demais trabalhadores que ali desempenhavam funções presenciaram a instalação desse sistema.

6 – A R. passou a proceder à captação de imagens e à sua gravação, abrangendo o escritório ocupado pela A. e ainda a sala de reuniões.

7 – Através desse sistema e durante vários meses, a R. captou imagens, procedendo à respetiva gravação, de atividades exercidas pela A., nomeadamente encontros amorosos, com relacionamento sexual, com um outro funcionário da empresa, dentro e fora do horário de trabalho daquela.

8 – No dia 7/7/2010, o gerente da R. deu conhecimento à A. do descrito em 7).

9 – No dia 27/7/2010, a R. remeteu à A. uma nota de culpa, com base nos factos referidos em 7), não tendo a carta registada com essa nota de culpa sido recebida pela A., por não ter o funcionário dos CTT logrado entregá-la, nem ter sido levantada pela A. na correspondente estação de correios.

10 – A A. enviou à R. carta registada com a/r, datada de 27/7/2010, registada a 3/8/2010 e recebida pela R. a 9/8/2010.

11 – Essa carta tinha o seguinte teor (parte relevante):

“B… (…) vem resolver, com justa causa, o contrato de trabalho, ao abrigo do disposto nos artºs 394 e 395, ambos do Código do Trabalho, produzindo os seus efeitos imediatamente, o que faz com o fundamento na violação gravosa de garantias legais da trabalhadora, ofensa à integridade moral, liberdade, dignidade e honra da trabalhadora, conforme os concretos fundamentos seguintes:

(…)
2 – Acontece, porém, que a mesma trabalhadora, foi vítima da violação gravosa de comportamento com caris sexuais, que condicionaram a liberdade, honra e dignidade da trabalhadora, tendo a falta de correspondência resultado na mudança de comportamento de V.ª Exª, no sentido de pressionar para a extinção da relação laboral.

3 – Pressão essa que associada à alegada intenção de diminuir os seus trabalhadores, alegando que não tinha trabalho, foi exercida pela gerência desde dezembro de 2009 até à presente data no sentido da trabalhadora abandonar o seu trabalho por sua iniciativa.

4 – Mais acresce que esta pressão para abandono do trabalho atingiu o insuportável quando Vª Ex.ª pressionou a ora trabalhadora para abandonar o seu trabalho sem direitos, sob pena de mostrar uns vídeos de foro íntimo, na sua hora de descanso, mostrando a envolvência com outra pessoa, sendo que a mesma trabalhadora desconhecia de todo que era filmada, tendo sido vítima de gravações ilícitas, cujo conhecimento chegou à mesma trabalhadora no dia 9/7/2010.

5 – Procedeu à filmagem da ora trabalhadora no seu local de trabalho e nos seus períodos de descanso, tendo ameaçado a mesma trabalhadora com a divulgação daquelas filmagens caso quisesse os seus direitos.

6 – Tendo verificado que não haveria abandono de trabalho nem qualquer outra causa de rescisão ou de disciplina, V.ª Ex.ª tem condicionado a correta prestação de trabalho, exercendo pressão para que ocorresse abandono do trabalho ou motivo para iniciar procedimento disciplinar

7 – No dia 9 de julho de 2010, V.ª Ex.ª, informou-me verbalmente que deveria arranjar outro emprego, pois iria ser despedida.

8 – Falta de condições de segurança e saúde no local de trabalho, designadamente, a ausência de qualquer tratamento de resíduos biológicos e falta de formação.

(…).
12 – A R. tinha grande apreço pelo desempenho profissional da A.

13 – Com o comportamento da R. descrito em 6) e 7), a A. ficou psicologicamente perturbada.

14 – A R. pagava à A. os subsídios de férias e de Natal de forma fracionada ao longo dos 12 meses do ano.


Fundamentação.
Sendo pelas conclusões do recurso que se delimita o respetivo objeto[2], como decorre das disposições conjugadas dos Art.ºs 684.º, n.º 3 e 685.º-A, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, na redação que lhe foi dada pelo diploma referido na nota (1), ex vi do disposto no Art.º 87.º, n.º 1 do Cód. Proc. do Trabalho[3], salvo tratando-se de matérias de conhecimento oficioso de que o Tribunal ad quem pode conhecer por sua iniciativa, a única questão a decidir nesta apelação consiste em saber se ocorreu justa causa para a A. resolver o contrato de trabalho.


Vejamos.
Previamente, deve referir-se que não tendo sido impugnada a decisão proferida acerca da matéria de facto, o recurso terá de ser decidido apenas com base nos factos dados como provados e acima elencados.

Por outro lado, ao caso é aplicável o CT2009, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, uma vez que tendo ele entrado em vigor em 2009-02-17, nos termos gerais, é de aplicar aos contratos de trabalho existentes nessa data, relativamente aos efeitos de factos ou situações coevos ou futuros, como a contrario sensu decorre do disposto no Art.º 7.º, n.º 1 da referida Lei. Ora, tendo a resolução do contrato ocorrido em 2010-08-09, data da receção da respetiva carta, pela R., já se encontrava em vigor o referido diploma.
Tendo em conta os factos dados como provados, vejamos o que, adrede, dispõe o CT2009:

Artigo 394.º

Justa causa de resolução

  1. Ocorrendo justa causa, pode o trabalhador fazer cessar imediatamente o contrato.
  2. Constituem justa causa de resolução do contrato pelo trabalhador, nomeadamente, os seguintes comportamentos do empregador:

f) Ofensa à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, punível por lei, praticada pelo empregador ou seu representante.

4. A justa causa é apreciada nos termos do nº 3 do artigo 351º, com as necessárias adaptações.

 

Artigo 395.º

Procedimento para resolução do contrato pelo trabalhador

1. O trabalhador deve comunicar a resolução do contrato ao empregador, por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos 30 dias subsequentes ao conhecimento dos factos.

Artigo 351.º

Noção de justa causa de despedimento

  1. Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao caráter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.


Ora, para conseguir o efeito de resolver o contrato de trabalho, impõe-se que o trabalhador faça uma comunicação escrita ao empregador donde constem, de forma sucinta, os factos que fundamentam a resolução, como dispõem as normas acabadas de transcrever.

Por outro lado, do Art.º 394.º, também acima parcialmente transcrito, resulta que a justa causa para que o trabalhador possa resolver o contrato de trabalho, motivadamente e com direito a indemnização, depende da verificação dos seguintes pressupostos:

- Comportamento da entidade empregadora, enquadrável em qualquer das alíneas do n.º 2 do referido Art.º 394.º;

- Que esse comportamento possa ser imputado[4] à entidade empregadora a título de culpa – elemento subjetivo;

- Que tal comportamento seja grave em si mesmo e nas suas consequências[5].

De referir que na distribuição do ónus da prova, cabe ao trabalhador demonstrar a existência do comportamento da entidade empregadora, nos termos do disposto no Art.º 342.º, n.º 1 do Cód. Civil [de acordo com o qual, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado] e cabe a esta provar que tal comportamento não procede de culpa sua, nos termos do disposto no Art.º 799.º, n.º 1 [segundo o qual, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento … da obrigação não procede de culpa sua] do mesmo diploma legal[6].
In casu, importa também considerar o disposto nos seguintes artigos do CT2009:

Artigo 20.º

Meios de vigilância a distância

1 — O empregador não pode utilizar meios de vigilância à distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador.

2 — A utilização de equipamento referido no número anterior é lícita sempre que tenha por finalidade a proteção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da atividade o justifiquem.

3 — Nos casos previstos no número anterior, o empregador informa o trabalhador sobre a existência e finalidade dos meios de vigilância utilizados, devendo nomeadamente afixar nos locais sujeitos os seguintes dizeres, consoante os casos: «Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão» ou «Este local encontra-se sob vigilância de um circuito fechado de televisão, procedendo-se à gravação de imagem e som», seguido de símbolo identificativo.

Artigo 21.º

Utilização de meios de vigilância a distância

1 — A utilização de meios de vigilância à distância no local de trabalho está sujeita a autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados.

2 — A autorização só pode ser concedida se a utilização dos meios for necessária, adequada e proporcional aos objetivos a atingir.

3 — Os dados pessoais recolhidos através dos meios de vigilância à distância são conservados durante o período necessário para a prossecução das finalidades da utilização a que se destinam, devendo ser destruídos no momento da transferência do trabalhador para outro local de trabalho ou da cessação do contrato de trabalho.
4 — O pedido de autorização a que se refere o n.º 1 deve ser acompanhado de parecer da comissão de trabalhadores ou, não estando este disponível 10 dias após a consulta, de comprovativo do pedido de parecer.


Estas normas foram antecedidas pelo disposto no Art.º 20.º do CT2003.
Em ambos os casos, tratou-se de adaptar à realidade jurídica laboral a disciplina que sobre a matéria da videovigilância já existia em termos gerais, nomeadamente,
- na Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, cujo Art.º 7.º, n.º 1, dispõe:

É proibido o tratamento de dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos.


- No Cód. Civil, nomeadamente, nos Art.ºs:

ARTIGO 70º

(Tutela geral da personalidade)

1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

ARTIGO 79º

(Direito à imagem)

1. O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela; depois da morte da pessoa retratada, a autorização compete às pessoas designadas no nº 2 do artigo 71º, segundo a ordem nele indicada.
3. O retrato não pode, porém, ser reproduzido, exposto ou lançado no comércio, se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro da pessoa retratada.

ARTIGO 80º

(Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada)

1. Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem.

ARTIGO 81º

(Limitação voluntária dos direitos de personalidade)

  1. Toda a limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade é nula, se for contrária aos princípios da ordem pública.
  2. A limitação voluntária, quando legal, é sempre revogável, ainda que com obrigação de indemnizar os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte.

- Na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, no:

Artigo 26.º

(Outros direitos pessoais)

A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.


Deste acervo legislativo resulta claramente que o legislador pretendeu que o trabalhador, também durante a execução do contrato, seja tratado com respeito pelos seus direitos de personalidade, uma vez que ele tem a sua pessoa implicada em tal relação jurídica: o contrato de trabalho é um contrato intuitu personae; daí o direito à reserva da intimidade da sua vida privada.


Entrando mais diretamente na matéria do caso, verificamos que em sede de videovigilância nos locais de trabalho, passamos da ausência de regulamentação para um regime jurídico que o CT2009 apurou.

Assim, é proibido gravar imagens que se destinem a controlar o desempenho profissional do trabalhador.

Tal deriva da circunstância de a substituição do legal representante ou do encarregado, por exemplo, por uma máquina, que grava permanentemente, sem interrupção, todo e qualquer movimento dos trabalhadores, provocar nestes “…o sentimento de que não são confiáveis…”[7], com elevado nível de stress, quase os reduzindo a autómatos, quando o trabalhador implica a sua pessoa na atividade que desenvolve para o empregador. A exceção a esta regra visa apenas as situações mais graves como, por exemplo, a prevenção de crimes, a segurança de pessoas e bens, isto é, a ultima ratio.
No entanto, é proibida a gravação oculta, sem conhecimento dos trabalhadores e sem autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados, sendo esta concedida, para além do mais, desde que observados os princípios da finalidade, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade.[8]

Porém, não sendo observados os requisitos legais, as provas assim obtidas são ilícitas, não podendo ser consideradas em sede de procedimento disciplinar, determinando em caso de despedimento, a ilicitude deste.[9]
Porém, tratando-se de resolução do contrato por iniciativa do trabalhador, a utilização de câmaras de vídeo sem observância dos legais requisitos pode integrar o conceito de justa causa. Na verdade, tratar-se-á de um comportamento do empregador, imputável a título de culpa, violador de direitos fundamentais do trabalhador.[10]
In casu, importa assim determinar acerca da existência de justa causa para resolver o contrato, atento os pressupostos previstos no Art.º 351.º, n.º 3 do CT2009.
Ora, a gravação de imagens efetuada pela R. não observou qualquer dos legais requisitos, acima mencionados em tese.

Na verdade, a circunstância de os trabalhadores terem presenciado a instalação de um sistema de videovigilância nos escritórios da R. não significa que esta tenha cumprido o dever de informação previsto no Art.º 20.º, n.º 3 do CT2009. É que tal dever inclui a informação acerca da finalidade das gravações, seu âmbito, em termos de som e imagem, bem como a afixação dos “dizeres” referidos na norma, para além da definição do tempo de conservação dos registos efetuados, o que a R. não provou.
Por outro lado, a R. não provou que obteve a autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados, o que era absolutamente indispensável, pois só esta entidade podia verificar in concreto o cumprimento, ou não, dos princípios da finalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, acima igualmente referidos.

Ora, instalado o sistema de videovigilância e inobservados os descritos deveres, é claro que o comportamento da R. é ilícito e, portanto, censurável.

Nem se diga que censurável é, igualmente, o relacionamento amoroso que a A. manteve com um colega de trabalho e que foi registado pelo sistema de videovigilância.

Na verdade, é certo que os encontros amorosos, no local de trabalho, com relacionamento sexual, como vem provado, comportamento atribuído à A., violou eventualmente deveres de lealdade, urbanidade e respeito, relativamente à R. Porém, constituindo as gravações efetuadas através do sistema de videovigilância invasão da vida íntima da A., violando direitos de personalidade, por sua natureza absolutos, o desvalor da conduta da empregadora supera de largo o da A., pois estamos perante bens jurídicos qualitativamente diversos. De resto, tendo as provas sido obtidas por meios ilícitos, sempre inquinariam, de igual sorte, todo e qualquer comportamento que a R. pudesse adotar com base nelas.

Por outro lado, também não se diga que, sendo as provas obtidas pelo sistema de videovigilância, insuscetíveis de serem consideradas em sede disciplinar, por ilícitas, igualmente delas não poderia servir-se a A. para resolver o contrato.
Cremos que tal comparação não tem razão de ser pois, em qualquer dos casos, estamos sempre perante o mesmo comportamento ilícito da R., não tendo a A. produzido qualquer prova. Realmente, conforme vem provado, o que a A. sabe das gravações efetuadas é apenas aquilo que a R. lhe transmitiu. Aliás, mesmo que existisse o paralelismo invocado pela R., sempre seria necessário lembrar que a relação que emerge do contrato de trabalho é assimétrica, pois o trabalhador implica a sua pessoa no contrato [o trabalhador, contrariamente ao empregador, não pode fazer substituir-se na execução do contrato]; aliás basta constatar que o despedimento é sempre vinculado, enquanto a cessação do contrato, por banda do trabalhador, sempre ocorre, embora possa acarretar-lhe consequências a nível patrimonial, se não forem observados determinados pressupostos.

Ora, tendo a A. alegado na carta de resolução do contrato, as gravações de que foi alvo, sendo elas ilícitas, atentos os fundamentos invocados, ilícito é também o comportamento da R. Cremos que, mostrando-se violados direitos fundamentais da A., que persistem ou podem persistir, pois não há notícia da destruição dos registos das imagens e som operados pelo sistema, se tornou pratica e imediatamente impossível a manutenção do contrato de trabalho por parte da A., o que integra justa causa de resolução do contrato.

Improcedem, destarte, as conclusões do recurso.


Decisão.
Termos em que se acorda em negar provimento à apelação, assim confirmando a sentença.
Custas pela R.


Porto, 2013-03-04

Manuel Joaquim Ferreira da Costa

Paula Alexandra Pinheiro Gaspar Leal Sotto Mayor de Carvalho

Maria José Pais de Sousa da Costa Pinto

______________
[1] Atento o disposto no Art.º 707.º, n.º 2 do CPC, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, ex vi do disposto nos Art.ºs 11.º, n.º 1 – a contrario sensu – e 12.º, n.º 1, ambos deste diploma.
[2] Cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, volume V, reimpressão, 1981, págs. 308 a 310 e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1986-07-25 e de 1986-10-14, in Boletim do Ministério da Justiça, respetivamente, n.º 359, págs. 522 a 531 e n.º 360, págs. 526 a 532.
[3] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13 de outubro.
[4] Cfr. Paul Ricoeur
, in O JUSTO OU A ESSÊNCIA DA JUSTIÇA, Instituto Piaget, Lisboa, 1995, pág. 38, segundo o qual, Imputar... é colocar na conta de alguém uma ação censurável, uma falta, logo, uma ação previamente confrontada com uma obrigação ou com uma interdição que essa ação infringe... ou... Imputar uma ação a alguém é atribuir-lha como sendo o seu verdadeiro autor, colocá-la, por assim dizer, na sua conta, e tornar esse alguém responsável por ela.
[5] Parece que não será de exigir que o comportamento revista tal grau de gravidade em si mesmo e nas suas consequências, que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, em termos de não ser exigível ao trabalhador a conservação do vínculo laboral – elemento causal. Tal posição, sufragada anteriormente e para as hipóteses de rescisão por iniciativa do trabalhador, continua a não ser acompanhada pela maioria da doutrina, que também no domínio do Código do Trabalho continua a entender que quando é o trabalhador que pretende pôr fim ao contrato, a justa causa se traduz no comportamento tipificado na lei, embora apreciado em concreto, mas sem necessidade de fazer apelo pontual aos pressupostos da justa causa constantes da cláusula geral do Art.º 9.º da LCCT, do Art.º 396.º, n.º 1 do Cód. do Trabalho de 2003, ou do Art.º 351.º, n.º 1 do CT2009, na consideração de que o despedimento briga com a segurança no emprego, enquanto a rescisão por iniciativa do trabalhador, mesmo ilícita, produz sempre o efeito da desvinculação, dado que ele sempre se pode restituir à liberdade, embora se sujeite a ter de indemnizar o empregador, caso o faça sem observar os requisitos legais.
Cfr. Ricardo Nascimento, in DA CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO, EM ESPECIAL POR INICIATIVA DO TRABALHADOR, 2008, págs. 172 e 173, notas 393 e 394.
[6] Cfr. Ricardo Nascimento, citado, págs.164 e segs., António Monteiro Fernandes, in DIREITO DO TRABALHO, 12.ª edição, 2004, págs. 603 a 609, João Leal Amado, in A PROTEÇÃO DO SALÁRIO, 1993, págs. 98 a 102 e in TEMAS LABORAIS, 2005, págs. 92 a 96, Albino Mendes Batista, in Estudos sobre o Código do Trabalho, 2004, págs. 21 a 36 e Pedro Romano Martinez, in DIREITO DO TRABALHO, 2.ª edição, 2005, págs. 752 a 756.
[7] Cfr. Maria Regina Redinha, in Utilização de Novas Tecnologias no Local de Trabalho – Algumas Questões, IV Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Coordenação de António Moreira, Almedina, 2002, pág. 117.
[8] Cfr.:
- José João Abrantes, in Contrato de Trabalho e Meios de Vigilância da Atividade do Trabalhador, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura, volume II, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Editora, 2003, págs. 809 ss., in Os Direitos de Personalidade do Trabalhador e a Regulamentação do Código do Trabalho, in Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ, n.º 71, págs. 63 a 65, in Contrato de Trabalho e Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, 2005, págs. 251 ss., in O Novo Código do Trabalho e os Direitos de Personalidade do Trabalhador, Estudos Sobre o Código do Trabalho, Coimbra Editora, 2004, págs. 145 ss. e A Reforma do Código do Trabalho, IGT e CEJ, Coimbra Editora, 2004, págs. 139 ss.
- Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in A Proteção dos Dados Pessoais no Código de Trabalho, A Reforma do Código do Trabalho, IGT e CEJ, Coimbra Editora, 2004, págs. 123 ss. e Temas Laborais Estudos e Pareceres, Almedina, 2006, págs. 91 ss.
- Maria Regina Redinha, in Os Direitos de Personalidade no Código do Trabalho: Atualidade e Oportunidade da sua Inclusão, A Reforma do Código do Trabalho, IGT e CEJ, Coimbra Editora, 2004, págs. 161 ss.
- Rui Assis, in O Poder de Direção do Empregador, Configuração geral e problemas atuais, Coimbra Editora, 2005, págs. 235 ss. e 253 ss.
- Maria do Rosário Palma Ramalho, in O Novo Código do Trabalho, Reflexões Sobre a Proposta de Lei Relativa ao Novo Código do Trabalho, Estudos de Direito do Trabalho, volume I, Almedina, 2003, págs. 15 ss.
- Júlio Manuel Vieira Gomes, in Direito do Trabalho, volume I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, págs. 320 ss.
- Teresa Alexandra Coelho Moreira, in Da Esfera Privada do Trabalhador e o Controlo do Empregador, Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2004, págs. 249 a 274 e Direitos de Personalidade, Código do Trabalho A Revisão de 2009, Coordenador: Paulo Morgado de Carvalho, Coimbra Editora, 2010, págs. 93 ss.
- Teresa Coelho Moreira e António Moreira, in Every Breath You Take, Every Move You Make: A Privacidade dos Trabalhadores e o Controlo Através de Meios Audiovisuais, in Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ, n.º 87, págs. 13 ss.
Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2006-02-08, transcrito e comentado in Revista do Ministério Público, Ano 27, abri-jun. 2006, Número 106, págs. 169 ss.
[9] Cfr. Amadeu Guerra, in A Privacidade no Local de Trabalho, As Novas Tecnologias e o Controlo dos Trabalhadores Através de Sistemas Automatizados, Uma Abordagem ao Código do Trabalho, Almedina, 2004, págs. 348 ss., Catarina Sarmento e Castro, in A proteção dos dados pessoais dos trabalhadores, Questões Laborais, Ano IX – 2002, 19, Coimbra Editora, págs. 27 ss., maxime, pág. 56.
Cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2008-12-09 (Sumário e comentário), in Prontuário de Direito do Trabalho, CEJ, n.º 82, págs. 123 a 126.
Cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1992-04-07, in Coletânea de Jurisprudência, Ano XVII-1992, Tomo II, págs. 321 ss., comentado por Guilherme Machado Dray, in Justa Causa e Esfera Privada, Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, volume II, Justa Causa de Despedimento, Instituto de Direito do Trabalho, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Almedina, 2001, págs. 35 ss., maxime, págs. 81 e 82 e por António Menezes Cordeiro, in O Respeito pela Esfera Privada do Trabalhador, I Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Coordenação de António Moreira, Almedina, 1998, págs. 17 ss., maxime, pág. 37.
[10] Cfr. Ricardo Nascimento, cit., págs.235 a 237.
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S U M Á R I O
I – Constitui justa causa de resolução do contrato, pelo trabalhador, a implementação de um sistema de videovigilância, por parte da R., sem observância de qualquer dos requisitos legais, nomeadamente, informação prévia dos trabalhadores, na forma legal e autorização da CNPD.
II – Apesar de as provas obtidas pelo sistema de videovigilância não poderem ser consideradas em sede disciplinar, por ilícitas, tal não impede que a trabalhadora invoque tal matéria se decidir resolver o contrato, com invocação de justa causa pois, em qualquer dos casos, estamos sempre perante o mesmo comportamento ilícito da R., não tendo a A. produzido qualquer prova.

Manuel Joaquim Ferreira da Costa

 


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